DICIONÁRIO VIVO DA INFÂNCIA: “AFETOS” – POR ALICIA ENTEL

26 setembro 2023
DICIONÁRIO VIVO DA INFÂNCIA: “AFETOS” – POR ALICIA ENTEL

Se a etimologia acadêmica for considerada, afeto – do latim affectus – está ligado a cada uma das paixões da mente, como raiva, amor, ódio, entre outras.

Porém, sobretudo na vida comum, o afeto está ligado ao amor ou carinho. Seus modos de se manifestar são variados na espécie humana, desde as carícias, os beijos, os gestos, as palavras, os olhares, os abraços. Todo esse universo, no mundo da infância, constitui um alimento quase tão importante quanto à nutrição em geral. Portanto, para entender o valor do afeto em crianças, é preciso seguir um roteiro que vai desde a noção de apego à atual chamada “educação emocional”. Mas, antes, vale a pena mencionar uma prévia provocativa: na espécie humana os afetos para com o outro não são disposições naturais, mas aprendidas.

Têm a ver com situações, culturas, memórias, formas de vincular-se. Em 1980, a psicanalista francesa Elisabeth Badinter trouxe ao público uma questão que caiu como uma bomba: o amor materno não seria instintivo, mas cultural, ou seja, que se aprende e muda com os tempos, tendências, setores sociais, culturas. A manifestação foi ousada para um Ocidente que havia endeusado a figura da maternidade, e que também elogiou uma forma de ser mãe com as supostas qualidades do sacrifício, o dom desinteressado, o voluntarismo a todo custo, o cuidado com algo natural e socialmente invisível. Então, se os afetos são aprendidos, quais são os ambientes mais propícios para isso? E, por sua vez, quais devem ser evitados?

Historiando sentimentos

Há uma longa tradição de estudos sobre as dimensões emocionais na infância. Também são reconhecidas diferentes abordagens e pontos de vista não abrangidos ​​na síntese do Dicionário Vivo da Infância, da Fundação Arcor.

Embora as perspectivas psicanalíticas – desde Freud a Lacan – tiveram grande poder e difusão, é possível abrir a reflexão para outra experiência de pesquisa, a de John Bowlby, que nos anos 50 do século XX estudou especificamente o que denominou a “perda afetiva”. Observando o comportamento de crianças muito pequenas em situações da realidade, percebeu como eram seus comportamentos quando separados de seus pais, principalmente de suas mães. Daí elaborou a Teoria do Apego.

Diferentes estudos sustentam que o apego é o vínculo afetivo que a criança desenvolve com seus pais (ou cuidadores) e que lhe fornece a segurança emocional essencial para um bom desenvolvimento da personalidade. A tese fundamental da Teoria do Apego é que o estado de segurança, ansiedade ou medo de uma criança é na maioria determinado pela acessibilidade e capacidade de resposta de sua figura principal de afeto (ou seja, a pessoa com quem a criança estabelece o vínculo de forma estável, geralmente sua mãe).

O apego fornece segurança emocional básica para a criança: ser acolhida e protegida incondicionalmente. Este comportamento pode ser observado em diferentes espécies animais, com as mesmas consequências: proximidade desejada pela mãe-ou pelo responsável–como base para proteção e continuidade positiva da espécie.

Bowlby sustentava que a poesia, a filosofia e a literatura se referiram abundantemente à perda afetiva, mas que a ciência não havia explorado o tema suficientemente. Para sua pesquisa, ele considerou os princípios de três ciências empiricamente baseadas: Etologia (ou estudo do comportamento animal), Psicologia Experimental e Neurofisiologia. Reconhecendo que o comportamento humano difere de outros seres vivos, que agem principalmente de acordo com seus instintos, em todas as espécies superiores (e não apenas no ser humano), o comportamento instintivo não responderia a um mecanismo estereotipado, mas seria um ato “idiossincrático” de um indivíduo específico. E tal ato dependeria das possibilidades de retorno que o ambiente ofereceria. Como aponta Oliva Delgado (2004), “longe de ser simplesmente um comportamento instintivo que sempre aparece da mesma forma na presença de um determinado estímulo ou sinal, o apego refere-se a uma série de comportamentos diversos, cuja ativação e desativação, assim como a intensidade e morfologia de suas manifestações, dependerão de vários fatores contextuais e individuais” (p. 65).

A experiência de segurança é o objetivo do sistema de apego, sendo então um regulador das emoções das crianças. Neste sentido, está no centro de muitas formas de transtornos mentais e de toda a tarefa terapêutica. Ninguém nasce com a capacidade para regular as próprias reações emocionais, mas desenvolve um sistema regulador dialógico no qual os sinais das crianças de mudanças em seus estados, momento a momento, são compreendidos e atendidos por quem cuida deles, permitindo, assim, chegar ao regulamento desses estados. Bebês aprendem que a ativação neurovegetativa na presença do cuidador não levará a uma desorganização além da sua capacidade de enfrentar tal situação. O cuidador estará lá para restaurar o equilíbrio. Os equilíbrios são alcançados com cuidado e carinho, que nada tem a ver com repressão ou com modos autoritários.

O apego seguro, então, constitui a base essencial para o crescimento da criança. Ao mesmo tempo, os adultos também podem passar pelo que é chamado de período de sensibilidade materna, isto é, uma predisposição ou sensibilidade aumentada ante os primeiros gestos do bebê. Em algumas culturas, como a da melanésia, após o parto normal, mãe e filho ficam reclusos juntos e com intervenção mínima de outros, durante um mês. Considera-se que a primeira fase da vida deixa uma marca indelével e precisam vivê-la plenamente. Embora em nossas culturas existam leis para proteger a gravidez, o parto e pós-parto, em diversas ocasiões e fatores – do trabalho ao consumo e à moda – tendem a colocar obstáculos para que esse período de especial sensibilidade para com o recém-nascido experimente cortes, quebras, obstáculos.

Mas, quando a oportunidade está presente, não só o bebê gosta, mas o adulto experimenta um grande prazer. Obviamente se trata de um filho desejado. A intuição e a comunicação não verbal constituem guias essenciais durante aqueles primeiros meses de vida. E o olhar do bebê, por sua vez, encontra no da mãe ou de quem é responsável pelo seu cuidado, reconhecimento e vínculo especial que é importante promover. No entanto, pesquisas históricas sobre as crianças confirmam que essas perspectivas são relativamente recentes em estudos da condição humana. Embora o reconhecimento do valor dos laços afetivos esteve presente na primeira infância, ou seja, desde o Jardim de infância à educação infantil, não tem sido igualmente importante em outros níveis de escolaridade. A preocupação com a alfabetização para a transmissão de informação considerada valiosa, sua elaboração por parte das crianças, uma forma de entender o pensamento científico como despojado de subjetividades, tudo isso tem sido prioridade na vida escolar. E não é que tenham sido ignorados aspectos afetivos, emocionais, mas a tradição da racionalidade moderna, às vezes, pareceu deixá-los em segundo plano ou abriu caminho em núcleos educacionais reduzidos.

É oportuno fazer uma breve retrospectiva sobre como a dimensão afetiva tem sido presente nas propostas educativas, embora nem sempre positivamente. Já na literatura do século XIX surge a denominação “Educação sentimental” no romance homônimo de Gustave Flaubert de 1869, mas é a narrativa da decepção, do jovem que vai à cidade estudar Direito e acaba embriagado por um amor impossível. O sentimental, as emoções, não parecem constituir aí uma dimensão que enobrece. Em vez disso, a sociedade adverte como fraquezas a superar. Por sua vez, e de outra área do conhecimento, o afetivo também foi objeto de estudo pela pedagogia positivista do final do século XIX, na Argentina, na Escola Normal, que se baseava em considerar o mundo emocional e os afetos como formas primitivas, iguais a tudo do horizonte do sensível. Para exemplificar de forma simples: a Escola Normal, seguindo um discurso higienista, supostamente proibiu o beijo para evitar infecções.

Tais atitudes em relação à vida escolar, embora persistissem, na década de 1960, o conhecimento e a preocupação com as crianças sofreram grandes mudanças, não apenas no domínio da psicologia do desenvolvimento, mas também no domínio da didática e da pedagogia. Estabeleceram, de alguma forma, que se deve reconhecer e valorizar a subjetividade infantil de todas as crianças, de todas as culturas. Interessante impacto no campo das Ciências da Educação teve a publicação, em 1968, pela editora Proteo, do livro de Jean Piaget: A construção do real na criança; onde já se mencionava a ligação entre aprendizagem e o mundo afetivo das crianças. Diferentes experiências e pesquisas do chamado Construtivismo na educação foram voltando cada vez mais o foco para as possibilidades, habilidades e contextos emocionais das crianças.

Assim, quando se estendeu ao campo educacional, a chamada “virada afetiva”, promovida pelas Ciências Sociais, era possível esperar que fosse reconhecido e valorizado especialmente o mundo afetivo em conjunto para melhorar a qualidade da educação e, por sua vez, formar crianças sensíveis à emancipação.

No entanto, diferentes motivações, entre elas certa crise na recepção do aprendizado escolar pelos alunos e a impossibilidade por parte do corpo docente de aplicar sanções disciplinares desatualizadas e questionáveis, conduziram não tanto à educação libertadora, mas a repensar como gerir, no mundo escolar, as emoções infantis, como integrá-las e reconhecê-las por parte dos próprios atores. Em concomitância com a expansão da psicologia cognitiva, propostas foram desenvolvidas para “educação emocional”, ou seja, o processo de ensino e aprendizagem da autorregulação das emoções e sentimentos, bem como a sua expansão adequada, coerente e significativa.

Em última análise, pretende-se melhorar o desempenho de alunos através do desenvolvimento de suas habilidades emocionais. No entanto, dada a sensibilidade dos “materiais a serem tratados” que não são nada mais e nada menos que a vida afetiva de crianças, os debates não foram mais levantados sobre se a escola deveria abordar como um problema as emoções infantis, mas pensar e reconhecer como a vida afetiva constitui uma dimensão fundamental do aprendizado.

Gerenciar emoções ou integrar afetos?

A educação emocional é tão importante que é considerada uma forma de prevenção primária inespecífica. Sem dúvida, sentir-se seguro, valorizado, ouvido, com reconhecimento e com adultos próximos que desafiam afetivamente as crianças melhora a vida e a aprendizagem da infância. Mas assim como o Iluminismo do século XVIII centrado na razão e que subestimava o resto das capacidades humanas, o crescimento da virada afetiva também poderia levar ao esquecimento o resto. Nesse sentido, eles levantaram, entre outros, os seguintes pontos de discussão ou, pelo menos as seguintes perguntas:

  1. A escola deve priorizar a dimensão afetiva ou é uma questão de família?
  2. Dependendo da forma como é abordada, a educação emocional seria uma nova forma de promover certo disciplinamento?
  3. Em que medida e a partir de quais experiências educativas se realiza a integração de diferentes aspectos da condição humana infantil?

A escola, como se sabe, promove uma socialização secundária, depois da família ou da comunidade de base que se ocupou da educação da criança. A presença e o valor da dimensão afetiva na escola têm a ver com respeito integral às crianças e com a comprovação de que tal atitude colabora de forma adequada com a aprendizagem.

Referem-se, nesse sentido, Zac, Viola e Peralta:

Uma ferramenta para promover o vínculo entre o adulto cuidador e o grupo responsável é tornar-se um ‘professor intérprete’. Consideramos intérprete o professor que pode ‘ler’ o estado de espírito daqueles que estão sob sua responsabilidade e traduzi-los em decisões práticas; que consegue registrar o que acontece com o grupo ou com um aluno em particular. Ser intérprete permite a esse adulto sair de um estado de espírito opressivo e ir em direção à visualização da esperança. (2017, pág. 21)

Para isso, é necessário que o professor tenha recebido formação em educação emocional, mas não como uma caixa de ferramentas, mas considerando uma perspectiva crítica. E isto, por sua vez, está ligado ao segundo ponto mencionado: o que são ou seriam os usos sociais da educação emocional. Muitas vezes é referido como o dispositivo de conhecimento que permite “gerenciar as emoções”, e os professores como arquitetos de propostas para canalizar a raiva, o desconforto ou a angústia infantil. Se considerado ao nível do imediato, essas propostas, herdeiras da psicologia cognitiva e, em outro nível, dos estudos das neurociências, surgem fornecendo recursos em situações difíceis de sala de aula. No entanto, desde uma perspectiva crítica, diz-se que as ferramentas fornecidas pelos usos sociais da educação emocional podem reinventar modalidades de controle e que, na verdade, se espalharam com esse fim além da vida escolar e, principalmente, no campo do trabalho.

Diante dessas críticas, reconhece-se a importância de repensar uma relação pedagógica enriquecedora para a comunidade educacional-crianças, professores, adultos responsáveis, autoridades–de crescimento integral das crianças, onde o raciocínio, imaginação e afetos não são dissociados das questões de aprendizado ou de experiência.

Os extremos do pêndulo oscilam entre considerar impossível abordar uma educação crítica sentimental e aqueles que a defendem, demonstram mais uma vez o caráter cultural dos caminhos afetivos para as crianças, que, sem dúvida, acomodam-se em remotas bases pulsionais, mas que precisam ser atualizadas novamente. Tal desafio hoje é muito importante: convida-nos a pensar novamente qual amor e de que qualidade estamos fornecendo para nossas crianças, se esse afeto promove ou viola seus direitos, se está baseado em raízes emancipatórias autênticas ou satisfaz, como um brinquedo-placebo, falsas necessidades impostas pelo consumo. E mais ainda, se além das ações individuais, o amor de e pelas crianças leva a estabelecer alertas coletivos de abandono ou maus-tratos, com a presença da comunidade e dos Estados, com proteção real e duradoura.


Este artigo foi produzido pela Dra. Alicia Entel. Ela é Pesquisadora em Comunicação, Cultura e Educação. Professora/consultora da Universidade de Buenos Aires, Mestre em Ciências Social com menção em Educação (FLACSO) e Doutora em Filosofia (Imagem e Cognição) pela Universidade de Paris VIII. Também é Diretora da Fundação Walter Benjamin, Instituto de Comunicação e Cultura Contemporâneo. Coordenou, entre outros, o projeto Infâncias: Vários Mundos, sobre a desigualdade na infância argentina (Fundação Arcor-FWB), com a publicação de 11 livros e inúmeros artigos. Também realiza a coordenação Editorial de Por Escrito, Revista temática sobre crianças e educação, da Fundação Arcor.

O texto faz parte do Dicionário Vivo da Infância, publicação comemorativa aos 30 anos da Fundação Arcor Argentina, que reúne uma seleção de 30 conceitos relacionados à infância. Clique aqui para fazer o download da publicação.


Para continuar lendo e atuando:

Aguiar da Costa, B. (2016). “Sentimientos y emociones en la historia de la educación: la perspectiva de la estética escolar”, en revista Fermentario N. 10, Vol. 2 Instituto de Educación, Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Universidad de la República. www.fhuce.edu.uy Faculdade de Educação, UNICAMP. www.fe.unicamp.br

Ainsworth, M. D. y Bell, S.M. (1978) “Apego, exploración y separación ilustrados a través de la conducta de niños de un año en una situación extraña”, en Delval, Juan (comp.) Lecturas de Psicología del niño, vol. 1, Madrid: Alianza.

Badinter, E. (1991). ¿Existe el instinto maternal?: Historia del amor maternal. Siglos XVII al XX, Barcelona: Paidós Ibérica.

Badinter, E. (2003). El conflicto: la mujer y la madre, Madrid: ed. La esfera de los libros.

Bisquerra, R. (2011). Educación emocional. Propuestas para educadores y familias, Barcelona: ed. Desclée De Brower.

Bowlby, J. (1976). El vínculo afectivo, Buenos Aires: Paidós.

Bowlby, J. (1984). La pérdida afectiva. Tristeza y depresión, Buenos Aires: Paidós.

Dolto, F. (1982). La dificultad de vivir, Barcelona: Gedisa.

Entel, A. (2013). “La importancia del afecto” en Infancias de Latinoamérica. Juegos y afectos, Buenos Aires: Fundación Arcor-Fundación Walter Benjamin.

Entel, A. (2008). Dialéctica de los sensible, Buenos Aires: Aidós.

Escolano Benito, Agustín (2018). Emociones & Educación. La construcción histórica de la educación emocional, Madrid, Visión Libros.

Klauss, M. H., Kennell, J.H. y Klauss, P. (1995). Bonding: Building the Foundations of Secure Attachment and Independence, New York: Addison-Wesley.

Lawrence, E. (1997). La inteligencia emocional de los niños, Buenos Aires: Grupo Zeta.

Mansione, I., Zac, D.,Temelini, J. (Orgs.) (2017). Caja de herramientas para la Educación emocional, Buenos Aires: Noveduc.

Oliva Delgado, A. (2004). “Estado actual de la teoría del apego”, en Revista de Psiquiatría Infanto-juvenil, N° 4 (AEPNyA. Disponible en https://psiquiatriainfantil. org/numero4/Apego.pdf.

Pineau, P. (2013). Escolarizar lo sensible. Estudios sobre estética escolar (1870-1945), Buenos Aires: Teseo.

Puiggrós, A. (1990). Sujetos, disciplina y currículo en los orígenes del sistema educativo argentino, Buenos Aires: Galerna.

Fundación Arcor. Curso: Vínculos saludables para el bienestar. Disponible en https://fundacionarcor.org

 

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