A FAMÍLIA COMO FACILITADORA E PROMOTORA DE CUIDADOS RESPONSIVOS

17 fevereiro 2025
A FAMÍLIA COMO FACILITADORA E PROMOTORA DE CUIDADOS RESPONSIVOS

Por Carmen Silvia Carvalho

A primeira infância é o alicerce do ser humano e do cidadão. Uma casa com alicerces fortes e bem es­truturados terá paredes e telhados sólidos, capa­zes de enfrentar ventos fortes. Se o alicerce não for consis­tente, a chance das paredes terem rachaduras ou ruírem é grande. Por essa razão, a primeira infância é considerada o período mais importante da vida de uma pessoa.

Somos constituídos na interdependência entre o corpo, a mente, o espírito, a afetividade e o meio; e, é na intera­ção com o meio que nos desenvolvemos. Segundo o pe­diatra, Dr. João Martins Filho, 50% de nossa personalidade é genética, e 50% dela vai sendo constituída nas trocas e interações que fazemos ao longo da vida. E a primeira e mais importante matriz dessas interações é a família7.

A criança nasce com uma impressionante potência para aprender tudo: no primeiro segundo de vida estabelece 25 mil sinapses com 100 mil neurônios que irão estabele­cer milhões de outras conexões; e nos primeiros mil dias de vida (gestação + 2 anos) ela terá o maior crescimento mental, imunológico, neurológico e emocional8.

Do ponto de vista intelectual, a criança construirá, se­gundo o cientista do desenvolvimento humano, Jean Pia­get, as noções de tempo, espaço, permanência do objeto e tantas outras que serão matrizes de toda a inteligência9.

E como a criança aprende quem ela é? É na troca com o outro que nos constituímos, o outro é o caminho para nós mesmos. Essa necessidade de espelhamento é es­trutural do ser humano, e, é por isso que a criança preci­sa se sentir aceita, aprovada para se sentir bem e cons­tituir uma identidade positiva. Essa constituição é muito importante, pois essa autoimagem influenciará todos os aspectos de sua vida: as relações consigo, com os ou­tros e com seus projetos de vida. E aí entra a família. Se a criança nasce em um lar que acolhe, cuida, alimenta, trata com carinho, ela começa desde pequena a se ver como alguém merecedor de amor, importante, pertencente àquele grupo e começará a constituir uma autoimagem positiva de si mesma. Se, ao contrário, ela nasce em um lar que a ignora, sofre maus tratos e abandono, ouve palavras que a desmerecem e a desqualificam, cresce achando que não é merecedora de amor, de respeito, que não é parte daquele lar e constituirá uma autoima­gem negativa. A afetividade e o cuidado são as grandes matrizes do vínculo.

O que define o vínculo é a união com características duradouras, laços e elos de conexão. Ele está ligado a relações recíprocas, que se baseiam nos pilares de co­nhecimento, reconhecimento, ódio e amor10.

Quero chamar a atenção para as palavras recíproca e amor desta definição, porque elas são as chaves da conexão. Recí­proca porque só acontece se os lados estiverem com polos que se aproximam, e amor, porque é ele a eletricidade que perpassa os dois polos para acontecer a conexão.

Apesar de parecer que não, há diferentes formas de amar e expressar o amor. Dependendo de como a pes­soa pensa o que é amar e como deve ser expresso, serão suas atitudes no estabelecimento da relação. Nesta con­versa, quero falar de alguns ingredientes que aprofun­dam a conexão entre pais e filhos por serem nutritivos, já adiantando haver outros que não são nutrientes e não serão objetos de nossa interação.

A primeira coisa é ensiná-la a amar. A si, ao outro, à vida. E, para isso, é fundamental ajudar a criança a se conhecer e a se fortalecer emocionalmente, ajudando-a a construir uma visão de si positiva, a perceber que é amada e me­recedora de amor, como já dissemos. Ou seja, aprender que as relações saudáveis acontecem na troca amorosa e pedem apoio emocional. Ele se expressa em carinho, aceitação, incentivo, presença acolhedora, que ajuda o outro a se sentir bem consigo mesmo, especialmente nos momentos mais difíceis. E esse apoio, no vínculo, é recí­proco. Se os pais ou as pessoas que cuidam da criança expressam seu amor dessa forma, a criança aprende a expressar o seu amor, assim também, e irá apoiar seus pais, amigos e filhos com uma presença acolhedora, es­pecialmente nos momentos difíceis da vida do outro. Os pais ou responsáveis, muitas vezes, pensam que se­ria uma fraqueza a criança perceber que eles não estão dando conta de alguma coisa, mas é o contrário. Mostrar a vulnerabilidade faz com que vejam o adulto com mais proximidade e pedir ajuda faz com que se sintam impor­tantes, corresponsáveis e úteis. Amar o outro e a vida co­meça por amar a si.

Outra coisa que o amor saudável pede é que nós, adul­tos, as ensinemos a escolher. Escolher é uma necessida­de da vida, fazemos isso a todo instante, mas não é fácil. Escolher é difícil, em primeiro lugar porque algo fica de fora e, muitas vezes, algo que era desejado. Muitas vezes o que você precisa escolher é o que menos deseja e o que fica de fora é o que mais deseja. É difícil escolher fazer a lição e deixar o futebol, o game ou a rede social de fora. Para fazer uma escolha dessas é preciso alto nível de consciência de seu propósito, alto nível de tolerância à frustração e autocontrole. Por isso, é importante que as crianças aprendam, aos poucos, a autorregulação, a de­cidir por si mesmas. Isso é crescer.

Mas, para aprenderem a escolher, é preciso que as dei­xemos fazer isso. Começa por pequenas escolhas, como a roupa que usará, se fará tal coisa antes ou depois do jantar, para gradativamente ir ampliando o espectro de situações possíveis. Na adolescência, eles precisarão escolher se es­tudam, se aceitam o cigarro que os amigos estão oferecen­do, se deixam o menino beijar ou avançar nos carinhos, se mentem e fazem o que querem ou falam a verdade e as­sumem seu desejo. Para se preparar para as escolhas que vão ficando cada vez mais complexas conforme se cresce, é preciso aprender a escolher desde cedo.

E, se do ponto de vista emocional tudo isso não é sim­ples, escolher tem outra coisa que é complicada. Quando a pessoa escolhe, torna-se responsável pelo que esco­lheu. Não dá para colocar a culpa no outro. Essa liberdade, que é maravilhosa, é também um grande peso. Quando a criança cresce assumindo a responsabilidade sobre suas escolhas, ela aprende a perceber que há possibilidades diversas de se conquistar algo, ela aprende sua potência e não culpa o outro por seus atos e decisões.

A possibilidade de escolher é essencial para se torna­rem adultos autônomos. Mas, por que é tão difícil deixar escolher? Na maior parte das vezes é porque o adulto não aguenta o erro ou não aguenta que a criança ou o jovem faça escolhas diferentes das que ele gostaria.

Se deixá-la escolher a roupa, pode colocar tudo des­combinado; se deixá-la escolher, corre o risco de que faça uma má escolha, algo que o adulto considera que não é bom para ela. E não é simples aguentar esse risco sem criticar ou culpá-la quando discorda. Mas, se as crianças e jovens não exercitarem a escolha, não puderem errar sem serem criticados, sentirão medo de escolher, terão insegurança e, com frequência, culparão os pais por tudo o que não der certo na vida deles. O adulto impor sua vontade é uma forma poderosa de romper a conexão, especialmente com os adolescentes, e essa ruptura pode permanecer, muitas vezes, pela vida adulta.

Permitir que aprendam a escolher não significa deixar de colocar limites. Os limites são necessários, especial­mente quando são pequenos, porque o mundo inter­no da criança ainda tem pouco “contorno”, ela conhece pouco de si, das regras, das relações, dos riscos, dos pe­rigos… a questão não é se o adulto deve colocar limi­tes, mas como colocar. Infelizmente a cultura vigente é de que a pessoa aprende pelo prêmio, quando atende a expectativa do adulto ou pelo apontamento do erro e punição, se age sem obedecer. “Vá para o quarto!”, “Fica sem celular por X dias”, e tantas outras formas de castigar e excluir, tão comuns na educação dos filhos. A criança logo aprende que quando ela quer que o outro satisfaça seu desejo, que a obedeça, deve fazê-lo sofrer para que sinta medo de se opor; e agirá dessa forma com os ami­gos e, no futuro, educará seus filhos assim, pois foi como aprendeu. Essa é a principal estratégia para a manuten­ção da violência nas relações humanas.

Mas, se a colocação do limite for feita de forma segura, consistente e respeitosa, ele cumprirá seu papel de ajudar a estruturar e integrar a criança na sociedade. Esse limite amoroso começa por uma conversa ou uma explicação, que, quanto menor a criança, mais curta deve ser. É impor­tante que a criança compreenda a razão da regra ou do combinado para ir criando consciência da razão daquela conduta. Se for maior, esse é o momento da negociação. Depois, é importante pedir que ela repita o que foi combi­nado, para garantir que tenha compreendido.

Para que a criança atenda, a melhor estratégia é olhar com firmeza diretamente em seus olhos e falar com voz baixa, firme e decisiva. “Já disse que não. Não adianta insistir.” Essas palavras são suficientes para que ela com­preenda que aquele é um não. Sem sermão, sem nego­ciações posteriores. Sem medo. Limites claros e consis­tentes dão segurança à criança.

É também importante os pais compreenderem que o brincar é a linguagem genuína da criança aprender, se comunicar e expressar seus desejos, de entender o mundo onde vive. Garantir tempo para que ela brinque livremente, explorando o meio, os objetos à sua volta, criando e fantasiando é fundamental para construir sua inteligência, segurança e estabelecer uma relação saudá­vel com a vida e consigo.

E, por ser a linguagem dela, os pais brincarem, conver­sarem, contarem histórias e ouvirem as histórias da crian­ça; jogar, cantar, rir, fazer coisas juntos, é essencial para a construção desse amor recíproco, dessa conexão pro­funda, que constitui uma criança forte do ponto de vista emocional, corajosa para aprender e enfrentar os desa­fios da escola e da vida, capaz de se relacionar consigo e com o outro pelo respeito e amorosidade. Essas são as conquistas mais importantes da vida de seu filho, vale a pena você investir nelas!

PARA CONTINUAR LENDO

INHELDER, Barbel; BOVET, Magali; SINCLAIR, Hermine. Aprendizagem e Estruturas do Conhecimento. Tradu­ção: Maria Aparecida Rodrigues Cintra e Maria Yolanda Rodrigues Cintra. São Paulo: Saraiva, 1977.

MACEDO, Lino. Ensaios Pedagógicos: como construir uma escola para todos? Porto Alegre: Artmed, 2005.

MACEDO, Lino. Ensaios Construtivistas: São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.

MARTINS FILHO, José. Os primeiros 1.000 dias de vida. Café Filosófico CPFL. Disponível em: https://www.youtu­be.com/watch?v=g2cVXuSJdp8. Acesso em 01 abr. 2024.

MATURANA, Humberto. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano do patriarcado à democracia. Tradução: Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Pa­las Athena, 2004.

SANTOS, Elisama. Educação não violenta: como estimu­lar autoestima, autodisciplina e resiliência em você e nas crianças – 7.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020.

CARMEN SILVIA CARVALHO é formada em Letras pela USP, Mestre em Psicologia da Aprendizagem e Desenvol­vimento Humano pela USP e MBA em Gestão e Empre­endedorismo Social pela Fundação Instituto de Adminis­tração (FIA). Dedicou sua vida profissional à educação em busca da transformação dos indivíduos, das relações humanas e da sociedade. Apaixonada pela teoria de Jean Piaget, estudou-a por mais de 20 anos e participou do Laboratório de Psicopedagogia da USP, coordenado pelo professor Dr. Lino de Macedo. Atuou como asses­sora na área de Português em escolas das redes pública e particular por mais de 20 anos. Participou em congres­sos e ministrou cursos sobre a teoria de Piaget, ensino de Português e atendimento psicopedagógico. Atua como psicopedagoga há mais de 30 anos, contemplando a orientação aos pais.

Atualmente, milita na Cultura de Paz, levando para em­presas, ONGs, Poder Judiciário, Fórum de Cultura de Paz, Universidade Umapaz, entre outros espaços, palestras e cursos com reflexões sobre formas de convivência não violentas, em busca da melhoria das relações humanas e da diminuição da violência na sociedade. Estudou Me­diação de Conflitos, Formação de Consenso, Comunica­ção não violenta, aplicação da Justiça Restaurativa e Ética nas escolas. É professora de Cultura de Paz na Associa­ção Palas Athena, onde faz parte do Conselho Consultivo. Foi uma das coordenadoras do curso de Cultura de Paz e Tecnologias da Convivência, em 2022, na Associação Palas Athena.

 


*Artigo publicado no Livro Cultura da Infância, do Instituto Arcor.

Para fazer o download da publicação completa, CLIQUE AQUI.


 

INFÂNCIAS VIVENCIADASCARMEN SILVIA CARVALHO 

  1. Qual era a sua brincadeira favorita; em casa, no quintal, na escola?

Quando eu era criança, meu pai era juiz no interior do estado de São Paulo. As cidades onde moramos eram pequenas e toda a meninada brincava na rua, que não tinha quase trânsito.  Eu adorava pular corda, brincar de pega-bandeira e esconde-esconde.  Não tenho certeza qual delas era minha preferida, mas acho que era pega-bandeira…

Em casa, eu tinha bonecas de papelão grosso que comprava no jornaleiro e adorava fazer roupas para ela. Tinha caixinhas com vestidos, calças, blusas, maiôs e toda sorte de vestuário, inclusive vários vestidos de noiva.  Naquela época, sonhava ser modista, e agora nem ligo para moda. Eu tinha também uma boneca e adorava fazer as coisas para ela. Fazia roupas de crochê e uma vez fiz uma cama toda pintada com a caixa de figo que minha mãe comprava. Nunca ninguém teve uma cama de boneca mais linda que a minha!

Na escola, brincava de gangorra e esconde-esconde.  Também ficava procurando garrafas vazias que o pessoal mais velho abandonava no pátio para trocar por Nhá Benta.

  1. Alguma música da sua infância que sempre ecoa em sua memória? Escreva um trechinho

Meu pai cantava uma música chamada “Sonhei que tu estavas tão linda” e eu acreditava que ele havia inventado para mim e que eu era a namorada dele.  Lembro até hoje minha decepção quando, mais velha, ouvi a música no rádio e descobri a verdade. Chorei muito de decepção.  Quem disse que Freud não estava certo?

A letra era mais ou menos assim:

Sonhei que tu estavas tão linda, numa noite de raro esplendor.

Teu vestido era branco, todo branco, meu amor.

A orquestra tocou uma valsa dolente, tomei-te aos braços, fomos dançando ambos silentes… e por aí vai. Na minha imaginação, eu dançava e rodopiava nos braços dele… 

  1. Qual brincadeira de rua você mais participava com outras crianças?

Todas as brincadeiras de rua eram com as crianças da vizinhança. Éramos muitas! Colocávamos um caixote em cada esquina e os carros respeitavam. Inventamos as “ruas de lazer” há 60 anos!

  1. Quais adultos foram marcantes positivamente em sua infância?

Na minha infância, foram meus pais, eles eram maravilhosos e eram tudo na minha vida.  Na adolescência, duas grandes amigas de minha mãe me marcaram. A Eunice Granato, por sua doçura, e a tia Carmen Silvia Lacerda, por sua força.  Meu nome é Carmen Silvia, em homenagem a ela e espero ter herdado sua força que sempre admirei.

  1. Um livro, história ou autor inesquecível que descobriu na sua infância.

Quando era criança, lia muitos gibis. O Fantasma era meu herói preferido.  Lia também Monteiro Lobato e a coleção do Mundo da Criança, especialmente os contos de fadas. No quinto ano, li Meu pé de laranja Lima e Éramos 6 e amei, lembro até hoje o rio de lágrimas que derramei!

A partir dos 13 anos, descobri verdadeiramente o mundo dos livros e devorei toda a estante que havia na minha casa! Quando descobria um autor, lia tudo dele. Devorei Machado de Assis, Nickos Kasantizakis, Graciliano Ramos, Lobsang Rampa e mil outros. A estante tinha 6 metros de comprimento por 3 metros de altura, cheia de livros. Aprendi tanto com eles!

  1. Alguma coisa que dava medo quando criança?

Eu tinha muito medo de desejar o que era proibido, porque, na história da Rapunzel, a mãe dela desejava os rabanetes proibidos da bruxa e, por isso, perdeu a filha que amava.  Então eu tinha medo de desejar o proibido e perder as pessoas que amava.  Essa história me fez muito mal, até bem tarde da minha vida.

  1. Um sonho de criança… Ele foi realizado?

Quando pequena, queria ser modista, hoje não ligo a mínima para a moda. Aos 11, 12 anos, queria ser freira missionária, acredite se quiser! Depois, aos 14, queria auxiliar na paz do mundo. Tenho trabalhado esse sonho até hoje, apesar de sua utopia…

  1. Tem uma criança dentro de você. O que você diria para ela?

Amo minha criança e a alimento diariamente. Adoro brincar, especialmente com as crianças, porque elas não têm censura, nem crítica; entregam-se para a fantasia, riem de qualquer bobeira e fazem coisas sem outro objetivo a não ser o prazer de fazer.  Elas são o contraponto da minha racionalidade. Todos os dias, digo para minha criança que a amo!

  • Categoria: Famílias, ONGs, Professores
  • Formatos: Livros, Publicações
  • Temas: Primeira Infância, Vínculos saudáveis
  • Ambientes e espaços: Aula, Casa
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