A ESCUTA E A PARTICIPAÇÃO DA CRIANÇA EM TODAS AS INSTÂNCIAS

8 outubro 2024
A ESCUTA E A PARTICIPAÇÃO DA CRIANÇA EM TODAS AS INSTÂNCIAS

Por Teresinha Klain Moreira

“Escutar crianças vai muito além de ouvir suas falas verbais.”

Adriana Friedmann

Na linha do tempo da infância, a participação da criança por meio de convites à manifestação de suas escolhas e desejos pela escuta da sua voz é um marco bem recente, contemporâneo, por assim dizer. Assegurar o lugar de fala da criança, não ne­cessariamente vocalizada, mas por meio de diferentes for­mas que ela utiliza para se expressar, antes mesmo de falar, como as gestuais, sonoras, culturais, corporais, atitudinais, entre outras, tem sido um potente mecanismo de participa­ção social, para tirar a criança da condição de invisibilidade.

Por muito tempo, as crianças foram conduzidas pelas es­colhas dos pais e dos adultos do seu convívio mais próximo, o que, infelizmente, ainda ocorre, em muitos contextos, ain­da que tenhamos formas eficientes, efetivas, sensíveis e afe­tivas de possibilitar a expressão da criança, comunicando seu desejo de participar e evidenciar suas escolhas em situ­ações diversas do cotidiano. Uma destas formas é o acolhi­mento da diversidade cultural, étnica, de gênero e religiosa, que se dá principalmente em espaços educadores formali­zados, mas também na comunidade e nos equipamentos da rede de proteção social, prevenindo, compreendendo e excluindo, assim, qualquer forma de preconceito.

A LEGISLAÇÃO COMO FERRAMENTA QUE ASSEGURA A PARTICIPAÇÃO COMO UM DIREITO

Na realidade brasileira, um grande divisor de águas para assegurar a participação da criança, quer seja para resguardar seus direitos, quer seja para dar voz e vez para elas, foi por meio do artigo 227, da Constituição Brasilei­ra, que colocou crianças e adolescentes como prioridade absoluta, tanto na esfera familiar, comunitária, assistencial, quanto na construção de políticas públicas.

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegu­rar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absolu­ta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Artigo 227, Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988.

Para que o artigo 227 fosse viabilizado, houve uma cons­trução política do marco legal e regulatório dos direitos humanos de crianças e adolescentes, por meio de um conjunto de normativas denominado Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, que tem mais de 33 anos de história e evidencia que a infância é o período que com­preende a faixa etária de 0 a 12 anos.

Pais, educadores e profissionais da rede de proteção so­cial desempenham papéis fundamentais na promoção e proteção desses direitos concebidos pelo ECA:

  • A educação e proteção; reforçando a importância da educação como um direito fundamental da criança e do adolescente, por meio de um ambiente escolar se­guro e estimulante.
  • A proteção contra a violência e o abuso; uma das prin­cipais preocupações do ECA.
  • O direito à saúde; uma garantia essencial que se tra­duz no acesso a serviços de saúde de qualidade, vaci­nação, acompanhamento médico e orientação sobre hábitos saudáveis.
  • A responsabilidade socioambiental; com a criação de cidadãos responsáveis e conscientes, valores éticos, responsabilidade social e respeito ao meio ambiente.
  • Acesso a medidas socioeducativas; em casos específi­cos e pontuais, o ECA prevê medidas socioeducativas, visando reintegração na sociedade.
  • Como destaque, o direito à participação ativa; reco­nhecendo o direito da criança e do adolescente à par­ticipação ativa em decisões que os afetam, incentivan­do o diálogo, a escuta das suas opiniões e o respeito às suas escolhas, sempre considerando a maturidade e o entendimento de cada faixa etária.

Neste contexto, a participação ativa é o canal de escu­ta da criança e do adolescente, concebido pelo ECA, e deve ser assegurado desde a primeiríssima infância, por meio de uma escuta empática e intuitiva de familiares e cuidadores mais próximos e de uma metodologia sensível dos profissionais da rede de proteção social, incluindo a escola e demais equipamentos públicos voltados para a convivência de crianças e adolescentes.

AS LINGUAGENS GESTUAIS, OS SONS E EXPRES­SÕES QUE PRECEDEM A FALA, DESDE A PRIMEIRÍSSI­MA INFÂNCIA…

Contrariando uma lógica respeitosa, que deveria acolher desde gestos e expressões dos bebês, antes mesmo que esbocem uma fala convencional, vemos que a escuta da criança ainda não é promovida na maioria dos contextos. O fato é que ainda não se considera o que ela quer, não há espaço para suas escolhas e, muitas vezes, o adulto atro­pela um pensamento que ela tenta encadear por gestos e movimentos corporais que já conseguem expressar com clareza uma resposta para o que querem e como querem, bastando para isso que o adulto cuidador seja sensível, observador e conhecedor de seus sinais que, ainda que sutis, comunicam seu modo de ser e estar no mundo.

Adriana Friedmann, especialista e pesquisadora na te­mática da escuta e participação das crianças, convida-nos a refletir sobre a importância da contribuição desse olhar multifocal para a singularidade dos grupos infantis e suas múltiplas linguagens.

Dentre as inúmeras áreas de conhecimento e setores da sociedade que têm seus esforços e olhares volta­dos para os diversos grupos infantis, a abordagem socioantropológica constitui uma importante e ne­cessária área que vem contribuir com novos concei­tos e ações e tem trazido à tona as significações que as crianças atribuem aos diversos componentes dos estilos de vida que levam, considerando comporta­mentos, representações e contextos de naturezas múltiplas. Adentrar e compreender seus universos torna–se urgente para podermos (re) conhecer as crianças nas suas singularidades. É no caminho de observar, escutar, dar voz às crianças e propiciar es­paços de expressão, que a Antropologia contribui, com seu olhar e reconhecimento das crianças como atores sociais, apontando a diversidade de culturas e linguagens infantis. Possibilitar que as crianças vivam plenamente suas infâncias a partir das suas expres­sões e ressignificar ações adequadas a interesses e necessidades dos diversos grupos infantis – na famí­lia, na escola, na comunidade – é o grande desafio que se apresenta para a educação das novas gera­ções. (Friedman, 2016, p. 5).

O corpo da criança fala, se expressa, pede ajuda e, se não é ouvido, grita e encontra formas sonoras e gestuais para ser atendido, pois a criança busca a todo tempo ser percebida pelo adulto, ela necessita desse vínculo, des­sa reciprocidade, como o ar que respira. Em situações de dor, fome ou outro desconforto, ela utiliza os recursos que tem para chamar a atenção do adulto, para que a “li­vre” daquele momento de sofrimento. A criança aprende desde muito cedo que o choro ou o grito é a forma que encontra para ser atendida, mas não precisaria ser assim, se a sensibilidade do mediador captasse os seus sinais. O tempo todo, os olhos da criança/bebê estão atentos à in­teração com o adulto cuidador, buscando apoio, vínculo, reciprocidade e conexão.

A PARTICIPAÇÃO SOCIAL SE APRENDE E SE ASSEGU­RA DESDE A INFÂNCIA

Dando início na primeiríssima infância, a escuta da criança encontra eco e validação por meio da mediação dos adultos cuidadores e de referência. Já a partir da pri­meira infância, a criança consegue se comunicar e pode participar de inúmeras oportunidades de expressar a sua fala, seja por meio de consultas ao que quer e pensa; de perguntas que acolhem, valorizam e consideram as suas respostas, para compor uma votação, para definir alguma situação cotidiana, como a escolha de uma brincadeira, de um determinado tipo de fruta ou da votação de um livro querido, a ser repetido na roda de leitura.

As oportunidades de expressar a fala surgem em mui­tas oportunidades ao longo da rotina da criança de 0 a 6 anos; quer seja em casa, na escola ou outros locais de per­tencimento que ela transita em suas rotinas diárias, como os serviços de fortalecimento de vínculos, clubes e asso­ciações que atuam no contraperíodo escolar na maioria dos municípios brasileiros.

Brincar de casinha no parque da escola, uma cabaninha no quintal ou brincar de mercado na cozinha de casa, são oportunidades que os adultos têm para ouvir muitas nar­rativas não ditas, perceber os sentimentos das crianças pelos gestos ou outros sinais, podendo observar a riqueza do simbolismo, do faz de conta em ação! Nestes momen­tos, as crianças revelam toda a sua capacidade criativa para representar papéis, dar nomes para os sentimentos e externar suas escolhas e preferências, assim como para revelar a imitação de outras pessoas ou animais do con­vívio. Os jogos simbólicos refletem a curiosidade latente nas crianças e o desejo transformador e encantador que habita cada corpo e mente em constante movimento.

A escuta atenta consiste neste valioso convite para os adultos captarem essa expressão tão diversa da criança, que dá vazão aos seus pensamentos por meio de bone­cos, manipulando blocos de madeira, construindo perso­nagens com gravetos coletados nos jardins, dando voz e vida a todos eles, assim como colocando ali a sua intensi­dade de desejos.

Neste contexto, as rodas de histórias, os diários que regis­tram as variadas propostas intencionais presentes no coti­diano das crianças nos espaços educacionais podem com­plementar esta escuta sensível. O processo de escuta é uma fonte inesgotável de aprendizagem para crianças e adultos.

As crianças de 6 a 12 anos já revelam grande protago­nismo diante de atividades planejadas por adultos com intencionalidade para ouvi-las, em diferentes formas de expressão.

Planejar atividades pode ser excelente ferramenta para criar um ambiente propício à expressão, ao diálogo e à tomada de decisões. Alguns exemplos a seguir já são ro­tineiros em espaços de convívio de crianças e em lares, onde a participação já é parte inerente em diferentes ar­ranjos familiares.

  • Rodas de Conversa: são momentos constantes, únicos e acolhedores para discussões que incentivem a parti­cipação de todos.
  • Diários: são ferramentas que incentivam a escrita como forma de expressão, que registram pensamen­tos, reflexões, sentimentos e experiências, que poste­riormente possam ser compartilhadas.
  • Assembleias: são espaços democráticos que incen­tivam o diálogo e a expressão genuína de todos que queiram participar de um processo legítimo de toma­da de decisões que pode acontecer desde a Educação Infantil até o Ensino Fundamental, compreendendo a abrangência da faixa etária da infância, de até 12 anos.
  • Arte e expressão criativa: oportunidades de expressar sentimentos de maneira não verbal que podem resul­tar em exposições e apresentações que compartilham o significado que está por trás das criações artísticas propriamente.
  • Teatro e Dramatizações: por meio de performances teatrais que permitam que as crianças e adolescentes interpretem papéis e situações, facilitando a expressão de emoções e pensamentos de maneira lúdica.
  • Rodas de Leitura: seleção de livros que abordem te­mas relevantes de interesse expressos pelas crianças em cada faixa etária, incentivando o compartilhamento de suas opiniões e experiências relacionadas.
  • Projetos Colaborativos: projetos em grupo que envol­vam pesquisa, discussão e apresentação, estimulando a colaboração e as oportunidades para expressarem suas ideias de maneira coletiva. Projetos de vida tam­bém cabem nesse quesito e são fontes importantes de tomadas de decisões entre os adolescentes.
  • Grêmios estudantis: a participação em grêmios estu­dantis é uma atividade histórico/política que se repete de forma cíclica na sociedade, sendo que essas instân­cias sempre oferecem oportunidades para expressar opiniões, tomar e influenciar decisões na comunidade escolar.
  • Entrevistas: são momentos ricos e singulares em que crianças e adolescentes entrevistam uns aos outros, criando espaços para compartilhar experiências pes­soais e aprender uns com os outros. A empatia é um dos valores que este tipo de atividade alcança.

Sabemos não haver receitas que caibam nessa ou na­quela realidade, pois tudo irá depender do desejo, do protagonismo e dos atores envolvidos neste grande pro­cesso de troca, doação, partilha, tolerância, concessão e discussão que a escuta sensível enseja.

Ao incorporar atividades planejadas com intencionali­dade, os adultos mediadores do convívio entre crianças e adolescentes, podem criar ambientes que estimulam a escuta em toda a sua amplitude conceitual, promovendo assim o desenvolvimento emocional, afetivo, social e cog­nitivo, fortalecendo vínculos e contribuindo para o enten­dimento das necessidades individuais que, somadas, che­gam ao valioso consenso, que é o ápice da consciência coletiva, tão perseguida pela humanidade.

PARA CONTINUAR LENDO

BRASIL. Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe so­bre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 128, n. 135, 16 jul. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 11 jan. 2023.

BRASIL. Lei n.º 13.257, de 8 de março de 2016. Dispõe so­bre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); o Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outu­bro de 1941 (Código de Processo Penal); a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943; a Lei n.º 11.770, de 9 de setembro de 2008; e a Lei n.º 12.662, de 5 de junho de 2012. Diário Oficial da União, Brasília-DF, ano 153, n. 46, 9 mar. 2016. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=1&da­ta=09/03/2016. Acesso em: 15 mar. 2024.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

SILVA, Eduardo Chaves da. Mudança institucional e coa­lizões de defesa no Congresso Nacional: do Estatuto da Criança e do Adolescente ao Marco Legal da Primeira In­fância (1990 – 2016). 2021. 245 f. l. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade de Brasília, Brasília, 2021.

COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

FRIEDMANN, Adriana. Pesquisas com crianças: processos de Escuta e observação realizado no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc SP. São Paulo, 2016, p. 5.

TERESINHA KLAIN MOREIRA é Pedagoga formada pela Unicamp, tendo Paulo Freire como paraninfo da sua tur­ma de formandos de 1980. Especialista em Educação e consciente do seu papel transformador, político e prota­gonista. Foi gestora escolar e coordenadora pedagógica por mais de 30 anos. É voluntária da Aliança pela Infân­cia, conselheira do Conselho Municipal de Cultura de Paz de Campinas por duas gestões. É membro do Grupo de Estudos de Educação Para a Paz (GEEPAZ), do Laborató­rio de Psicologia Genética da Faculdade de Educação da Unicamp. Idealizadora e cocoordenadora do projeto Paz se Faz com Arte, parceria entre a Aliança pela Infância e o Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. Fez parte da equipe do Programa Primeira Infância em Foco, da Funda­ção FEAC e é consultora do Instituto Arcor Brasil.

 

*Artigo publicado no Livro Cultura da Infância, do Instituto Arcor.
Para fazer o download da publicação completa, CLIQUE AQUI.

 

INFÂNCIAS VIVENCIADAS: TERESINHA KLAIN MOREIRA

  1. Qual era a sua brincadeira favorita; em casa, no quintal, na escola?

Brincar de boneca, especialmente a Susi, de escolinha, de cuidar da minha galinha “francesa”, no quintal, e de amarelinha, na escola.

  1. Alguma música da sua infância que sempre ecoa em sua memória? Escreva um trechinho dela.

“Senhora Santana na beira do rio, lavando os paninhos para o seu bento filho…” Ensinada pela minha avó materna Silvia Theodoro, a única que tive, pois quando nasci, meus demais avôs e a outra avó já eram falecidos.

  1. Qual brincadeira de rua você mais participava com outras crianças?

Esconde-esconde, bets (taco) e queimada.

  1. Quais adultos foram marcantes positivamente em sua infância?

Meus pais, minha avó materna Silvia, a tia Lyris e os tios Ercy e o padrinho Fortunato.

  1. Um livro, história ou autor inesquecível que descobriu na sua infância.

Os contos de fadas dos Irmãos Grimm e a Alice no país das maravilhas.

  1. Alguma coisa que dava medo quando criança?

Gente que gritava, cachorro grande e o galo do Sr. Morandi que me bicou.

  1. Um sonho de criança… Ele foi realizado?

Para minha alegria, muitos sonhos foram realizados, mas ver um castelo de verdade não foi.

  1. Tem uma criança dentro de você. O que você diria para ela?

Brinque muito, tome chuva, explore a natureza e não peça ajuda para nada que você consiga fazer sozinha.

 

  • Categoria: Famílias, ONGs, Professores
  • Formatos: Livros
  • Temas: Direitos das crianças, Primeira Infância
  • Idades: Todos
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