Por Mônica Samia
Somos seres sociais! Somos sujeitos de cultura!
Mas, sabemos, estas características intrínsecas do ser humano se desenvolvem mediadas pela qualidade das interações que cada pessoa vivencia no seu meio social.
E, como estas interações acontecem?
Interagimos com o mundo a partir das nossas múltiplas linguagens. O dicionário Aurélio define Linguagem como “tudo quanto serve para expressar ideias, sentimentos, modos de comportamento etc. (…) é todo um sistema de signos que serve de meio de comunicação entre os indivíduos e pode ser percebido pelos diversos órgãos dos sentidos.” Por isso, as linguagens são as principais mediadoras da nossa relação com o mundo.
Com este rico aparato de tantas linguagens, fomos construindo, ao longo da história da humanidade, um vasto arcabouço cultural que está em permanente movimento. Por meio das linguagens podemos tanto acessar este construto quanto criar e produzir novos elementos da cultura.
Esta pequena introdução nos ajuda a perceber a beleza e a potencialidade que estes dois elementos – cultura e linguagens – oferecem para nossa forma de ser e estar no mundo. Estamos diante de uma infinidade de possibilidades de apropriação e produção de cultura jamais vista, especialmente pelos avanços que tivemos nas últimas décadas com as tecnologias digitais, que nos trazem a possibilidade de acessar esse universo de conhecimento e construção histórica e nos convidam a interagir de forma cada vez mais criativa e autoral diante deste legado e do que podemos produzir.
Este é o cenário! A nós, cabe decidir como nos relacionamos com ele, não é verdade? Então, precisamos fazer as perguntas que cabem ao contexto da educação, em especial à educação na Primeira Infância diante destas possibilidades. Por exemplo, como bebês e crianças, que representam o inédito no mundo, que têm o mundo todo a descobrir, terão o direito de se relacionar e acessar estes conhecimentos da cultura e desenvolver suas linguagens que estão disponíveis potencialmente, mas que precisam de boas experiências para se desenvolver?
Esta é uma questão-chave quando nos deparamos com as escolhas que fazemos sobre o que constitui o currículo da Educação Infantil, entendendo currículo como um conjunto de práticas cotidianas que coloca em relação os saberes das crianças com o aparato cultural, como orienta as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), 2009. As escolhas pedagógicas, alicerçadas nas ideias de cultura e linguagem, nos oferecem um mosaico de possibilidades para tecer um cotidiano rico, diversificado, pautado não em conteúdos escolares, mas em conhecimentos e experiências de e sobre a vida. Ao fazermos esta escolha, as múltiplas linguagens, que são próprias dos humanos e latentes nas crianças, tornam-se canais potentes de apropriação de seus modos de ser e estar no mundo. Estamos falando de uma extraordinária forma de conhecer, sentir e degustar a vida. E são muitos os exemplos que podemos citar como práticas alinhadas a estes fundamentos estruturantes.
As linguagens simbólicas, como o brincar, por exemplo, têm um papel essencial, podemos dizer, vital, na compreensão e representação do mundo pelos bebês e crianças porque por meio delas podem interpretar e elaborar o que vivenciam, aprendendo sobre si e sobre o mundo.
O brincar abre para a criança múltiplas janelas de interpretação, compreensão e ação sobre a realidade. Nele, as coisas podem ser outras, o mundo vira do avesso, de ponta-cabeça, permitindo à criança se descolar da realidade imediata e transitar por outros tempos e lugares, inventar e realizar ações/interações com a ajuda de gestos, expressões e palavras, ser autora de suas histórias e ser outros, muitos outros (…) Sendo esses outros, definindo outros tempos, lugares e relações as crianças aprendem a olhar e compreender o mundo e a si mesmas de outras perspectivas.
(Borba, 2006, p. 46-47).
É brincando que a criança amplia sua capacidade criadora, imaginativa, descobre e explora seu corpo e os ambientes, compreende as dimensões de tempo e espaço, enfim, se expressa com inteireza, a partir de dimensões táteis, corporais, linguísticas, mas também sutis, colocando em jogo toda sua subjetividade, por meio da expressão dos seus sentimentos, emoções e sensações. A expressão da linguagem do brincar é, sem dúvida, a que mais caracteriza esta fase do desenvolvimento humano e deve ser reconhecida não apenas como uma necessidade, mas como um direito de cada criança a ter sua infância preservada e seu desenvolvimento potencializado.
Além da dimensão lúdica, a dimensão estética é condição fundamental para a formação humana. Embora a história da humanidade nos ofereça um acervo rico e diverso em relação a esta linguagem, nunca tivemos tantos apelos visuais como na atualidade. Esta linguagem visual expressa processos diversificados de criação humana, que comunicam ideias e percepções sobre as realidades vividas. É toda uma gramática visual a ser conhecida, sentida, apreciada, vivenciada. Interagir com estas linguagens como aparatos culturais que contam muitas histórias sobre múltiplas formas de expressão é promover o direito das crianças a interagirem com a linguagem plástica como aparato cultural e não como um conteúdo escolar. Sem dúvida, isso exige dos educadores que também possam expandir seus conhecimentos e suas experiências estéticas. Mas, este pode ser um convite maravilhoso e é urgente que o aceitemos para as crianças poderem acessar este acervo cultural expresso por tantas formas de expressão.
Outra dimensão da expressividade estética está nas paisagens sonoras que habitam o nosso cotidiano e o dos bebês e crianças. Música é arte e cultura. O fazer musical está impregnado na nossa cultura e na escola, e é deste lugar de aparato cultural que deve ser acessado. A música é uma das formas mais potentes de expressão das culturas. Não é uma ferramenta para ensinar habilidades motoras, para dar comandos, mas uma linguagem cultural e artística que precisa ser conhecida pelas crianças. A escola é, sem dúvida, um lugar privilegiado para ampliar o repertório musical das crianças, bem como de oferecer a elas o direito de acessar diferentes manifestações culturais que têm a música como elemento constitutivo. Além disso, conhecer os sons, sentir o silêncio, as pausas, os ritmos, são experiências fundamentais para bebês e crianças, pois estes elementos fazem parte da nossa vida e devem ser percebidos a partir de uma dimensão sensível e subjetiva, pois sempre nos afetam de alguma forma.
Música é, ainda, ritmo e movimento, é linguagem que liga o verbal ao corporal, oferecendo convites importantes no que se refere às nossas formas de expressão.
Ainda no campo das Artes, a Literatura também merece um destaque como uma linguagem fundante, tanto para a ampliação do universo cultural das crianças quanto para a construção da sua subjetividade. Como a arte tecida pelas palavras, a literatura oferece uma fonte inesgotável para nosso contato com a beleza, o sensível e a estética. E, é deste lugar que ela, como objeto cultural e linguagem expressiva, deve adentrar o ambiente escolar, para que uma relação afetiva positiva possa ser construída desde a mais tenra idade. Assim, apreciar, degustar e encantar são os verbos que mais combinam com os tempos e modos de oferecer o acesso a este universo encantado do mundo literário às crianças.
Assim, uma abordagem que considere o currículo como importante instrumento de ampliação do universo cultural das crianças, por meio de diferentes linguagens, implica planejar e oferecer, para elas e com elas, ricos ambientes em que diferentes aparatos culturais sejam acessados na sua natureza original, respeitando suas histórias.
Temos um importante trabalho a fazer para romper com a lógica conteudista – já superada na totalidade dos documentos norteadores da política nacional para a Educação Infantil – e construir uma história que fortaleça um currículo de e para a vida no cotidiano das instituições. Um primeiro e grande passo é, sem dúvida, garantir aos bebês e crianças o acesso aos bens culturais, como grandes legados que podem ser degustados e transformados, dando a cada bebê e criança um lugar real de sujeito histórico. É urgente!
PARA CONTINUAR LENDO
BORBA, Angela M. O brincar como um modo de ser e estar no mundo. In: BEAUCHAMP, Jeanete; PAGEL, Sandra Denise; NASCIMENTO, Aricélia Ribeiro do (Org.) Ensino Fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de 6 anos. Brasília, DF: Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006.
MÔNICA SAMIA é Pedagoga, Doutora em Educação, Palestrante, Consultora na área de Educação, Especialista em Educação Infantil, sendo as abordagens Reggiana e Pikleriana e as Pedagogias Participativas suas principais referências. Tem ampla experiência em Formação de Educadores e Formadores, consultoria em gestão educacional, elaboração de materiais pedagógicos de referência, principalmente na Educação Infantil e no Ensino Fundamental – Anos Iniciais. Sua experiência é fruto de imersões em escolas de referência no Brasil e no mundo, pesquisas, estudos e cursos com especialistas e das consultorias e formações que realiza em redes públicas e escolas particulares. Tem diversos artigos publicados. Em 2017, lançou o livro “Diálogos sobre formação de formadores da educação infantil”, pela Ed. Appris; em 2023, o livro “Espaços do Sim: confie no brincar dos bebês e das crianças bem pequenas”, do qual foi coautora.
*Artigo publicado no Livro Cultura da Infância, do Instituto Arcor.
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INFÂNCIAS VIVENCIADAS – MÔNICA SAMIA
1. Qual era a sua brincadeira favorita; em casa, no quintal, na escola?
No quintal, sem dúvida.
2. Alguma música da sua infância que sempre ecoa em sua memória? Escreva um trechinho dela.
Sabiá lá na gaiola fez um buraquinho, voou, voou, voou, voou…
3. Qual brincadeira de rua você mais participava com outras crianças?
Queimada.
4. Quais adultos foram marcantes positivamente em sua infância?
Meus avós paternos.
5. Um livro, história ou autor inesquecível que descobriu na sua infância.
As histórias contadas pelo meu avô.
6. Alguma coisa que dava medo quando criança?
Assombração.
7. Um sonho de criança… Ele foi realizado?
Viajar. Realizo sempre.
8. Tem uma criança dentro de você. O que você diria para ela?
Saber que você mora aí torna minha vida mais feliz e leve!