A CRIANÇA COMO PESQUISADORA DO MUNDO

2 setembro 2024
A CRIANÇA COMO PESQUISADORA DO MUNDO

Por Roberta Rocha Borges

“Verdadeiras inovações são tão difíceis de aceitar e apreciar. Elas abalam as nossas referências, porque nos forçam ver o mundo com um novo olhar. Elas nos abrem ao que é diferente e inesperado.”

(Rinaldi, 2016)

A PESQUISA COMO FORMA DE APRENDER

A pesquisa é a maneira sensível das crianças enxer­garem o mundo físico e social, este mundo que é tão fascinante e curioso, onde as crianças ado­tam a postura de interrogar este universo. É o modo como aprendem sobre as coisas, fazem as primeiras perguntas, mas também dão as primeiras interpretações e explica­ções e que não são particularmente leais, porque abando­nam com frequência suas ideias, substituindo-as por ou­tras, incessantemente. Elas sabem que nada está pronto e acabado, pois abraçam o imprevisto e o provisório, pois assim vão aprofundando suas ideias e pensamentos com o intuito de construírem as teorias e os conceitos do uni­verso que vivem, buscando compreendê-lo.

Não há dúvida de que o ser humano já nasce pesqui­sador, pela forma singular que os bebês investigam o mundo, a partir das suas ações e das suas intuições. Esse mecanismo de investigação dos bebês vai ganhando elementos a partir das explorações que eles realizam em cada etapa do seu desenvolvimento.

O abrir e fechar caixas, empilhar blocos, tampar potes, organizar uma coleção de folhas, observar o formato e as cores de variadas sementes… A cada novo exercício ex­ploratório de conhecimento do mundo físico, o processo da pesquisa que se iniciou com os bebês vai se aprimo­rando e ganhando novos elementos. Com isso, a escola de Educação Infantil que investe nesse desabrochar da pesquisa, desde a primeiríssima infância, vai proporcio­nando às crianças essa capacidade de funcionamento ce­rebral, ou seja, a capacidade de desenvolver o pensamen­to científico e crítico, num exercício exploratório constante e enriquecedor.

Outro elemento importante que surge a partir dos dois anos é a função simbólica, que, em síntese, é a capacida­de de representar o mundo, comunicar-se e de interiorizar as suas ações. É com essa capacidade que percebemos o quanto a criança pequena raciocina intuitivamente e ao logo do tempo começa a raciocinar de maneira mais de­dutiva, como explicita a autora:

O pensamento da criança de dois até seis anos é intuitivo, ou seja, ela substitui a lógica pelo meca­nismo da intuição. Assim, a criança, diante de al­guns problemas práticos, apresenta respostas que se apoiam nas aparências dos fatos, o que ocorre porque a criança pequena não infere de um modo dedutivo, nem indutivo, dependendo seus pensa­mentos quase sempre de deduções por analogia. Isso acontece porque as crianças dessa idade de­duzem um caso particular de outro caso particular, sem se referir a uma lei comum que os ligue, o que acontece pelo fato do pensamento dela ser caracte­rizado, ainda, pela falta de reversibilidade (enxergar um problema a partir de diferentes pontos de vista) e ausência de conservação. (Borges, 2021, p. 12)

Então, na educação infantil, quando as crianças ganham essa capacidade, torna-se visível o funcionamento cada vez mais elaborado do pensamento científico. As crianças apresentam essa autêntica e própria forma de conhecer do ser humano, ou seja, de descobrir, criar, representar, levantar hipóteses e trazer novas ideias e pensamentos daquilo que iniciou com uma simples pergunta.

Nesse processo tão complexo e inerente do ser huma­no, podemos compreender a força do trabalho científico das crianças, bem como a subjetividade, a singularidade, a identidade, a potência do pensamento de cada uma delas.

É importante ressaltar que toda investigação pressupõe buscas, descobertas e perguntas; por isso, quando o pro­fessor planeja trabalhar com esse caminho, a temática esco­lhida para ser investigada deve possibilitar a ação da crian­ça, como se ela se assemelhasse a um pequeno cientista curioso. A pesquisa propõe, em sua essência, uma didática envolvente. Um caminho tão fascinante, apaixonante e con­vidativo que possibilita o despertar da vida na escola.

Esse caminho não é nada linear, pois a pesquisa não se origina toda planejada e pronta para percorrer um único direcionamento. O caminho é construído a partir da escu­ta atenta, de observação cuidadosa, do processo dialógi­co e de uma reflexão frequente.

A pesquisa possibilita o trabalho com o currículo aberto, flexível e emergente, cujo conteúdo nasce do cotidiano das experiências de pesquisa das crianças. Esse é um dos principais motivos pelos quais as crianças têm grande in­teresse por essa proposta de trabalho.

E, ao longo desta trajetória, vamos observando, no co­tidiano na escola de educação infantil, aquilo que é mais expressivo para o aprendizado das crianças; então, nós, profissionais da área, nos interrogamos:

  • Com o que as crianças mais se envolvem?
  • Que tipo de teoria provisória essas crianças têm?
  • Como posso desafiar essas teorias?
  • O que as crianças pensam sobre essas teorias?
  • Como elas registrariam essas teorias?
  • Como é possível entender e detalhar o trabalho de um tema por um período mais longo e aprofundar os pro­cessos de aprendizagem das crianças?
  • Como o trabalho deve prosseguir?
  • Como documentar?

Para compreender e responder a essas questões é neces­sário começar pela caracterização do trabalho com projetos de pesquisa, que consiste em uma investigação profunda de um tema que vale a pena estudar ao longo de um ano letivo. Ele pode surgir a partir de uma proposta escolhida pela professora, a partir da escuta ou da observação dos diálogos e interesses das crianças, mas deve proporcionar às crianças a vivência concreta dos caminhos da pesquisa, praticando o exercício do pensamento científico.

Na tabela abaixo, é possível compreender o caminho da pesquisa a ser vivenciado a partir das várias ações que são realizadas entre crianças e professores:

Professores Crianças
Propõem e acolhem a escuta da temática de interesse das crianças.  Escolhem a temática.
Projetam a pesquisa  Contribuem na projetação, trazendo    as suas experiências.
Aprofundam seus estudos sobre a temática.  Trazem suas ideias provisórias.
Montam os contextos investigativos.  Vivem os contextos investigativos.
Colhem as ideias, pensamentos e gestos.  Narram, desenham, pensam, criam       as  experiências que estão vivendo.
Projetam experiências para estudos do meio.  Vivem as experiências do meio.
Documentam as ações, pensamentos e colhem os registros, fotografias, etc.  Produzem desenhos, expressam por     meio de escrita e fala, criam, etc.

 Fonte: Elaborada pela autora

Uma etapa também fundamental desse processo de pesquisa que se dá ao longo do percurso vivido é a do­cumentação pedagógica. Os registros documentativos dão a oportunidade ao professor de observar o desenvol­vimento, identificar novos interesses e projetar situações desafiadoras para as crianças.

O PAPEL DO PROFESSOR PESQUISADOR

Quanto ao professor cabe ser pesquisador, junto com as crianças. Ele deve desempenhar o papel ativo na inves­tigação, observando as ações curiosas das crianças, reali­zando perguntas a elas e a si mesmo. Deve, ainda, levantar hipóteses, contribuindo com o foco da investigação, opor­tunizar bons contextos de aprendizagem e documentar o processo vivido. Esse professor pesquisador não dá respostas prontas; levando uma programação curricular fechada e pouco flexível, ele deve observar atentamente as ações realizadas pelas crianças, os olhares curiosos, as buscas, os interesses e as perguntas.

Esse conjunto de atitudes leva o professor a conhecer o que as crianças querem saber sobre o assunto, assim como o que lhes interessa. Além disso, o professor deve sempre ter a curiosidade de acompanhar o caminho da pesquisa que as crianças estão percorrendo, e deve se debruçar nesse trabalho se interrogando sempre: escutar as crianças nesse processo dá ao professor um profundo sentimen­to de originalidade, ao despertar seu papel de professor pesquisador. Escutar abre uma janela importante de que­rer estar perto da criança e envolver–se nos processos de aprendizagem. A escuta nos oferece ferramentas impres­cindíveis ao trabalho: o deslumbramento, o maravilhar-se, o assombro, a reflexão e a alegria de estar com os meninos e as meninas no cotidiano da escola. Para inserir a pesqui­sa na escola como um processo do cotidiano, é necessário compreender claramente as etapas do percurso a ser vivi­do, caso contrário corremos o risco de retornar a uma didá­tica programada, sem sentido para as crianças.

CONCLUSÃO

O professor pesquisador organiza toda essa rica traje­tória que abre espaço para a construção e descoberta es­pontâneas, criando condições e abrindo campos de inte­ração, vivência e exploração para a criança pesquisadora.

Esse rico trabalho, desenvolvido na escola, ficará mar­cado na vida de cada uma dessas crianças, que levarão na sua bagagem o valor da atividade da pesquisa no seu caminho mais completo: da experiência à formulação de teorias.

Enfim, como nos ensina Mantoan (2017), na pesquisa não buscamos um saber simplificado, limitado, reduzido – somente pela palavra, pela informação. Precisamos buscar aprofundar, ir além, saber minuciosamente sobre as coi­sas, observar os detalhes e apropriar-se do conhecimento.

PARA CONTINUAR LENDO

BORGES, Roberta Rocha. A creche como instituição dedi­cada à primeira infância e concebida a partir de fóruns públicos situados na sociedade civil. São Paulo: Forma escrita, 2015.

BORGES, Roberta Rocha. Curso de extensão univer­sitária PROEPRE: contribuição para formação de pro­fessores da creche. 2009. 327p. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Edu­cação, Campinas, SP. Disponível em: https://hdl.handle. net/20.500.12733/1609594. Acesso em: 2 abr. 2024.

BORGES, Roberta Rocha. Novo olhar para a infância: a pesquisa das crianças e o professor pesquisador. Fun­dação Feac, Universidade Estadual de Campinas, Núcleo de Estudos de Políticas Públicas. Programa de Estudos de Política Pública para a Educação Infantil. Campinas, SP.: NEPPFEAC, 2021. v.2.

DAHLBERG, Gunilla; MOSS, Peter; PENCE, Alan. Beyond Quality in Early Childood Education and Care: Postmo­dern Perspectives. London; New York: Routledge: Falmer Taylor & Francis Group, 2004.

GOLDSCHMIED, Elionor; JACKSON, Sonia. Educação de 0 a 3 anos: o atendimento de creche. Porto Alegre: Art­med, 2006.

MALAGUZZI. Loris. Histórias, ideias e filosofia básica. In: EDWARDS, Carolyn; GANDINI, Lella; FORMAN, George (Org.) As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Porto Alegre: Artmed, 1999. p. 59–104.

MANTOAN, Maria Teresa Egler. A pesquisa como prática educativa: construir novos modos de ensinar na escola. In: BORGES, R.R.; CANTELLI, V.; MARIOTTI, A.; PEREIRA, R. (Org.). Do projetar o contexto investigativo ao maravi­lhar–se: Quais caminhos seguir? Ed. 148 Educação, 2017.

MOSS, Peter. Microprojeto e macropolítica: aprendizagem por meio de relações. In: EDWARDS, Carolyn; GANDINI, Lella; FORMAN, George (Org.). As cem linguagens da criança: a experiência de Reggio Emilia em transforma­ção. Porto Alegre: Penso, 2016. p.113–117 e 124.

REGGIO CHILDREN. Regimento escolas e creches para in­fância da Comuna de Reggio Emilia, 2013.

RINALDI, C. Diálogos com Reggio Emilia: Escutar, investi­gar e aprender. São Paulo: Paz e Terra, 2012.

RINALDI, C. Documentação e Avaliação: qual relação? In: ZERO, PROJETO. Tornando visível a aprendizagem: crian­ças que aprendem individualmente e em grupo. São Pau­lo: Phorte Editora, 2014, p. 80-90. (Coleção Reggio Emilia).

ROBERTA ROCHA BORGES é Doutora em Educação, na área de Desenvolvimento Humano e Educação pela Faculdade de Educação da UNICAMP, com pós-doutora­do em Educação pela mesma faculdade. Realizou parte do seu doutorado na Universidade do Minho no Instituto da Criança em Braga – Portugal e na Université de Genè­ve, nos Archives de Piaget em Genebra – Suíça. Realizou estágios como parte das atividades do seu doutorado nas Creches e pré-escolas públicas de Reggio Emilia, na Itália, e nas creches públicas de Barcelona, na Espanha. Participa da equipe de pesquisadores do Núcleo de Es­tudos de Políticas Públicas – NEPP, coordenando o Pro­grama de Estudos em Políticas Públicas para a Educação Infantil. Integra o LEPED como professora colaboradora. Docente e autora do curso de extensão: Pesquisa na es­cola – da pergunta inicial à documentação pedagógica. É professora do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Organizadora dos Fóruns: In­ternacional de Educação Infantil e de Educação Infantil como Política Pública do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da UNICAMP.


*Artigo publicado no Livro Cultura da Infância, do Instituto Arcor.
Para fazer o download da publicação completa, CLIQUE AQUI.

INFÂNCIAS VIVENCIADAS: ROBERTA ROCHA BORGES

  1. Qual era a sua brincadeira favorita; em casa, no quintal, na escola?

Minha escola tinha uma casa de boneca maravilhosa, tudo em miniatura: o quarto, a cozinha e a sala. Além disso, era equipada com mobiliário parecido com o de uma casa real. Então, poder brincar nesta casa era entrar em um mundo só meu.

Tive a oportunidade de crescer em uma casa com um quintal exuberante, mas neste quintal havia uma árvore cujo nome popular era Chorão. À tarde, depois da escola, eu subia nesta árvore com os meus irmãos, sempre lavávamos algo para comer e tínhamos muitos assuntos para conversar sobre os acontecimentos da escola que havíamos vividos. Lembro-me até hoje das risadas que dávamos.

  1. Alguma música da sua infância que sempre ecoa em sua memória? Escreva um trechinho dela.

A casa, Vinícius de Moraes: “Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada, ninguém podia entrar nela não, porque na casa não tinha chão…”

  1. Qual brincadeira de rua você mais participava com outras crianças?

Andávamos de bicicleta e nos sentíamos livres!

  1. Quais adultos foram marcantes positivamente em sua infância?

Uma tia, irmã da minha mãe, que era professora, e amava os seus sobrinhos.

  1. Um livro, história ou autor inesquecível que descobriu na sua infância.

A bolsa Amarela de Lygia Bojunga.

  1. Alguma coisa que dava medo quando criança?

As sombras de algo que aparecia no quarto escuro que eu não identificava.

  1. Um sonho de criança… Ele foi realizado?

Queria ser professora, ensinar crianças, estar junto delas. Penso que realizei este sonho.

  1. Tem uma criança dentro de você. O que você diria para ela?

Sim, tem uma criança dentro de mim, penso isso porque tive uma infância muito feliz e, quando olho para esse tempo, digo para essa criança: — você nasceu em uma família que a amava. Você tinha uma irmã que era sua companheira, dois irmãos aventureiros e pais que te acompanharam e apoiaram em todo o seu percurso de vida.

 

 

  • Categoria: Famílias, ONGs, Professores
  • Formatos: Livros, Publicações
  • Temas: Direitos das crianças, Primeira Infância
  • Idades: Todos
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